Um rapaz chamado Júlio Cocielo decidiu falar sobre o jogador francês Mbappé, um dos maiores destaques da Copa da Rússia. “Mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein”. Sua piada grassou as redes sociais debaixo de uma avalanche de acusações de racismo. A bola de neve aumentou quando “brincadeiras” antigas do mocinho começaram a ser desencavadas: “gritei VAI MACACA pela janela e a vizinha negra bateu no portão da casa pra me dar bronca” (11/12/13); “o brasil seria mais lindo se não houvesse frescura com piadas racistas. Mas já que é proibido, a única solução é exterminar os negros” (28/12/13). Descubro que o rapaz chamado Júlio Cocielo é uma celebridade da internet de 25 anos, youtuber, vlogueiro ou, como se diz nas agências de publicidade, um “influenciador digital”, com 16 milhões de seguidores. DEZESSEIS MILHÕES DE SEGUIDORES. A repercussão negativa de seus posts racistas chegaram às empresas que associaram suas marcas a ele: Submarino, Coca-cola e Itaú emitiram declarações rompendo relações com o rapaz chamado Júlio Cocielo, com o discurso de que repudiam discriminação etc.

No dia seguinte, a devassa continuou: outro “influenciador digital”, Cauê Moura, perdeu seu patrocínio com a fintech Warren por tuítes que faziam graça com necrofilia, estupro, homofobia, transfobia e, de novo, racismo. Porque, claro, a Warren repudia “todo e qualquer discurso de ódio, segregação, machista e homofóbico”. Graças a seu comunicado oficial, agora sabemos que a empresa gosta mesmo é de “amor, respeito e união”, yeah.

Faz tempo que eu profetizo que o período de glória dos influenciadores digitais vai acabar em escândalo. Na verdade, nem tanto tempo assim: em 2017, quando a Câmara dos Deputados aprovou a comercialização de remédios para emagrecer que a Anvisa afirma causarem problemas cardíacos. Imaginei aquela youtuber fitness recebendo um caminhão de dinheiro para fazer “unboxing” de sibutramina, aquela fashion discontroller tomando femproporex no café da manhã ou aquele xovem youtuber mergulhando a avó numa banheira cheia de anfepramona. E pessoas morrendo por causa de sua publicidade disfarçada de conteúdo, de sua irresponsabilidade para com o que produzem e a relação de intimidade devassada que é a base do conteúdo youtuber.

Mas parece que o escândalo está chegando de forma paulatina, matando os peixes por aquilo que lhes deram fama: a “ousadia”, a “coragem” de falar e fazer o que lhes dá na telha, na maior veleidade e cara-de-pau.

Fica claro que a pretensa “ousadia” nada mais é do que aquilo que há 20 anos chamávamos de “apelação”. A banheira do Gugu de ontem é o banho de geleia de hoje. A “liberdade de expressão” de hoje é o Homem do Sapato Branco de ontem. O merchan durante o café da manhã da novela de ontem é o “influenciador digital” fazendo cara de surpresa com as porcarias que seu patrocinador lhe enviou hoje. Mesmo que seja ilegal, como a publicidade para crianças feita pelo rei dos youtubers brasileiros, Felipe Neto:

Acontece que o único compromisso do influenciador digital com sua audiência é fazê-la se multiplicar. E acontece que, com os analytics da vida cada vez mais refinados, fica cada vez mais matematicamente claro o que as pessoas querem que lhes seja oferecido – ou, melhor dizendo, o que elas querem que lhes seja tomado. Basta ter a “coragem” de mergulhar na gelatina, vestir-se e comportar-se como um débil-mental, ser grosseiro com quem estiver em sua volta e alimentar o ciclo de solidão de toda uma geração. É isso que rende views, que rende likes, que rende jabá, que rende patrocínio de multinacionais que é chamado de influência, ainda que má.

Meu filho me apresentou ao Gato Galático nos tempos em que ele usava de seu canal para fazer desenhos animados. Viramos todos fãs do cara. Grandes personagens, ótimas ideias. Com o tempo, e os analytics, foi preciso dar “o que as pessoas querem hoje em dia”. O animador promissor, o criador de histórias, foi ficando cada vez mais no banco de reservas e o Gato Galático criou sua “família de miaus” e em vez de oferecer seu trabalho a seu público, passou a confiscar a atenção das crianças relembrando seus vexames de infância, comendo coisas nojentas, rolando no plástico bolha, testando brinquedos ou “trollando” seus colegas de quarto. Gato Galático deixou de ser antes mesmo que fosse alguma coisa de verdade. Mas não ser nada é pré-requisito para ser um “influenciador digital”, então parabéns para ele.

O Gato Galático poderia estar fazendo seus ótimos desenhos animados. Mas para ser “influenciador digital” é preciso fazer “o que as pessoas querem ver” como cair dentro da piscina tentando andar sobre a água.

Gente sem nada a dizer e dizendo seu nada com vários problemas com a língua portuguesa, com a gentileza, com o respeito ao próximo, com a roteirização e com a ética, em busca de números de likes.  Sempre me intrigou que os vloggers peçam para que seu público “deixe seu like” antes mesmo que qualquer conteúdo seja exibido. Como posso gostar do que ainda não vi? Com o tempo, percebi que o like não significa “gostei”; significa “pode ganhar dinheiro com minha curtida” ou “eu te autorizo a bater minha carteira”.

Tudo isso seria triste, mas tem coisa pior: o pior é saber que empresas gigantescas como Coca-cola, Adidas, Submarino, Warren e Itaú só tenham se dado ao trabalho de vasculhar o conteúdo produzido pelos “influencers” depois que suas mensagens de racismo, misoginia e ódio explodiram pelas redes sociais. Isso significa que o conteúdo nunca importou pra eles, como importaram os números de likes. E toda a consciência social repentina de seus comunicados não significa mais do que um bando de marmotas correndo atrás da comida, abandonando a multidão de likes de gente acrítica em direção à multidão de unlikes de gente supercrítica.

Houve um tempo em que as marcas queriam se associar a comunidades formadas em torno de conteúdo de qualidade  – ou que tivesse aparência de qualidade ou que tivessem a melhor média de qualidade com visibilidade. Rodrigo Leão formou-se publicitário e homem de comunicação nessa época. Rodrigo escreveu que “a busca da popularidade a qualquer custo, típica da categoria [de influenciadores digitais], sem o devido investimento na qualidade do conteúdo que produzem, sempre dá errado. Não é a toa que as marcas se afastam dos programas de TV com alta audiência e baixa qualidade como os antigos formatos do Ratinho, João Kleber ou mesmo Pânico. Na TV, são chamados de apelativos. No YouTube, são o padrão: fale absurdos, humilhe pessoas, tome banho de Nutella, faça pegadinhas, faça paródias de músicas sem respeitar direitos autorais, etc. Se o formato Youtuber fosse entretenimento de qualidade, a Netflix também teria os seus. Ah, não, lá você paga pra receber o conteúdo, então jamais aceitaria pessoas de vinte e poucos anos gritando e agindo como e tivessem doze.”

A baixa qualidade não é uma contingência no mundo dos influenciadores digitais. É parte fundamental da receita. Compare a audiência da maioria dos (poucos) canais bem escritos, bem dirigidos e bem apresentados com os desses digital pilantras e veja se as métricas do Youtube motivam alguém a abandonar as fraldas. Me tranquiliza notar que o reinado desses impostores vai acabar em breve, mas, enquanto isso não quero que as pessoas que amo façam parte do rastro de destruição que esses apeladores vão deixar atrás de si.

* Este texto será republicado a cada novo escândalo com influenciadores digitais, trocando apenas os primeiros parágrafos para lhe dar temperatura. Acho que todo mundo que rala pra produzir conteúdo de qualidade, OFERECENDO algo às pessoas em vez de TOMANDO coisas das pessoas, deveria se empenhar igualmente em mostrar as entranhas desse negócio podre e caracterizar o mundo dos influenciadores digitais com um dos três nomes que ele deve ter: apelação, publicidade disfarçada de conteúdo ou publicidade disfarçada de conteúdo apelativo.