01 - John e Yoko Danie e Malu

 

Na próxima sexta-feira, dia 27/11, chega às lojas de discos – físicas e digitais – o décimo-segundo álbum da cantora Daniela Mercury, chamado Vinil Virtual. Em vez de soltar um single com uma música de trabalho para anteceder seu lançamento, como ocorre tradicionalmente entre artistas de música, Daniela iniciou a divulgação do álbum revelando sua capa, uma foto em que aparece nua, abraçada à sua esposa, a jornalista e empresária Malu Verçosa. A imagem foi enviada com primazia à revista Rolling Stone brasileira, para não deixar dúvidas a respeito da sua referência: o lendário clique que Annie Leibovitz fez de John Lennon e Yoko Ono, para a capa da Rolling Stone americana em sua edição de 22 de janeiro de 1981.

A foto original tornou-se um ícone por diversos motivos. Em primeiro lugar, pela própria força e expressividade capturadas magistralmente por Leibovitz em um dos casais mais famosos e controversos do século 20. O design escolhido pela Rolling Stone para a capa, na época – sem nenhum texto nem chamada além do nome da revista e da foto em si – reforçou ainda mais seu impacto e carga dramática. E, finalmente, todo o contexto da sessão, ocorrida em 8 de dezembro de 1980, algumas horas antes de Lennon ser assassinado por um stalker em frente ao prédio onde morava em Nova York. Não espanta que em 2005 a imagem tenha sido votada pela American Society of Magazine Editors como a melhor capa de revista dos últimos 40 anos, sendo parodiada e homenageada dezenas de vezes.

Annie Leibovitz era a editora de fotografia da Rolling Stone e, de fato, estava desenvolvendo não apenas a identidade visual da revista, mas de toda a cultura pop de sua época. Reza a lenda que sua pauta era para fotos apenas do ex-beatle. Durante a sessão, entretanto, o próprio Lennon pediu para que Yoko fosse clicada também. Annie sugeriu então que ambos posassem nus – como na capa do disco ultraexperimental Two Virgins de 1969. Mas Yoko se declarou desconfortável e recusou. Lennon, por sua vez, se despiu tranquilamente, deixou suas roupas sobre o sofá branco e, com Yoko deitada no carpete creme da sala, enganchou-se nu ao redor da mulher e esta foi a foto da capa.

Essa história revela a pouca intencionalidade da imagem. Em sua entrevista à Rolling Stone brasileira, entretanto, Daniela Mercury enxergava na foto clássica parte das “manifestações de paz e amor, contra qualquer tipo de violência” do músico inglês com as quais pretenderia “se conectar” por meio da embalagem de seu novo disco.

Na realidade, a foto de Vinil Virtual se conecta, mesmo, mesmo, com a longa série de manifestações públicas de orgulho homossexual da cantora desde abril de 2013, quando assumiu em sua conta no Instagram o relacionamento com Malu Verçosa. A assessoria de imprensa da cantora acredita que o anúncio “foi como um estrondo no Brasil e em outros países no mundo” como um símbolo da “grande conquista no Brasil de igualdade de direitos na união entre pessoas do mesmo sexo”. Desde então, Daniela e sua equipe vêm autocelebrando o que chamam de “efeito Daniela” em entrevistas, press-releases e até em um livro (Uma história de amor, editora Leya) sobre a importância política e a coragem artística desse casamento e o impacto positivo que ele teria tido na sociedade brasileira.

A capa de Vinil Virtual foi divulgada alguns dias antes que um vídeo da campanha Livres & Iguais da ONU pela igualdade dos direitos LGBTI. O vídeo mostra detalhes da cerimônia de casamento de Daniela e Malu, com o áudio da música “Maria casaria”, faixa do novo disco, uma música a respeito de um relacionamento gay. Dentro de todo esse contexto, a leitura da foto de Daniela é simples e direta: o amor entre um homem e uma mulher é tão digno de celebração quanto o amor entre duas mulheres.

Entretanto, apesar da alardeada “conexão” entre a foto de 1980 e a de 2015, há tantas “desconexões” entre as imagens que talvez seja importante estudá-las sob a luz da história e da própria fotografia para não cairmos na armadilha de controvérsias de press release:

1) A foto de 1980 foi feita durante um intervalo das gravações de Milk and Honey, álbum que John e Yoko gravavam em Nova York, que sucederia Double Fantasy de 1980 e antecederia uma turnê mundial. Tanto um LP quanto outro quanto a excursão eram assinadas, em conjunto, como produtos de dois artistas: John Lennon e Yoko Ono. O álbum Vinil Virtual, entretanto, é creditado apenas a Daniela Mercury. Malu Verçosa não assina o álbum em conjunto com Daniela, não assina nenhuma música e não participa do processo criativo do álbum como Yoko participava, senão como musa de canções como “Maria casaria”.

2) Antes que seus criadores posassem para a Rolling Stone, Double Fantasy já havia rendido um single, “(Just like) Starting Over”, que chegara ao Top 10 tanto nos EUA quanto na Inglaterra. Ou seja: Lennon vivia o renascimento de sua relevância como astro pop, depois de cinco anos dedicado à vida caseira. Daniela, por outro lado, embora nunca tenha abandonado a vida pública, não tem um grande hit autoral desde o final dos anos 1990, época de “Rapunzel” e “Nobre vagabundo”. Na verdade, é justamente o seu casamento que lhe tem rendido generoso espaço na mídia nos últimos dois anos – e em sua própria agenda artística, como “campeã da igualdade” da ONU e “embaixadora da boa vontade” da Unicef.

3) Em 1981, não havia Photoshop, recurso de edição e correção computadorizada de imagens usado e abusado na imagem da (ótima) fotógrafa Celia Santos.

4) Difícil dizer isso sem parecer rude, mas Celia Santos não é Annie Leibovitz. Ninguém é, na verdade. Nossa torcida é para que, ao menos, Celia tenha sido recompensada o suficiente pelo peso descomunal de lançar-se à comparação com uma das maiores fotógrafas de todos os tempos, justamente na imagem que é uma de suas obras-primas.

5) Yoko era objeto de repulsa por parte da maioria dos fãs dos Beatles, culpada, simploriamente, por haver afastado mentalmente Lennon de seus três companheiros de banda. O caso das brasileiras é muito diverso. Em entrevista à revista TPM, Daniela conta que, embora esperasse “muita manifestação contra” seu casamento com Malu, não foi o que aconteceu: “Não recebemos nenhuma atitude de indelicadeza, pelo contrário. As pessoas batem palma, estão felizes por nós.” Ou seja, a autocelebrada coragem de Daniela esbarra no fato de que não houve oposição a ela – diferentemente do caso de Lennon, que insistiu para que a esposa aparecesse na foto, diferentemente do plano original da revista.

6) A imagem de Lennon remete a um animal agarrado a uma árvore, ou a um filhote agarrado à mãe. Reforça o que o cantor dizia no início dos anos 1970: “estou sempre em busca de uma mãe, mas ela nunca vem” e se conecta com músicas feministas como “Woman is the nigger of the world”. Ou seja, trata-se de um poderoso ídolo mundial, demonstrando sua fragilidade e dependência do sexo tido como “fraco” – um manifesto em favor do outro. A intenção de Daniela Mercury, segundo disse à Rolling Stone, é oposta ao altruísmo: “É uma expressão da minha vida, da minha arte, do meu amor” (grifo meu).

7) A imagem de Daniela é erotizada, especialmente no retoque de computador em sua região lombar e o preto-e-branco lesbian-chic que a aproxima mais do célebre poster “Kiss” de Tanya Chalkin do que da linguagem da Rolling Stone. Todas as imperfeições do quarentão Lennon estão visíveis na foto, feita no chão, no tapete, sem a sofisticação erótica da homenagem brasileira.

8) Enquanto Yoko não demonstra emoção alguma diante da dependência de Lennon, Malu sorri e retribui o carinho com um afago.

9) Daniela disse que tirou a roupa “pela paz”. As campanhas pela paz de Lennon, da primeira metade dos anos 1970, eram tentativas pioneiras de reverter o culto a celebridades em engajamento político. Ou, como ele dizia, “vender a paz como se vende sabonetes”. As vezes em que tirou a roupa eram provocações artísticas mesmo.

10) Em 1980, Lennon tirou a roupa não para vender um produto dele mesmo, mas para vender uma revista então em delicada fase de transição (a lendária campanha “Percepção/Realidade” da Fallon Worldwide é de 1985). Assim como Paul McCartney (que colocou dinheiro do próprio bolso na criação do jornal underground International Times em Londres), Lennon apoiou tanto quanto pode o pequeno jornal americano Rolling Stone em sua fase inicial, dando entrevistas exclusivas e posando para fotos inéditas. Jan Wenner, publisher da hoje milionária franquia, nunca esqueceu tal generosidade. A relação de Daniela Mercury com a imprensa não é tão afetuosa assim (ela costuma posicionar um gravador próprio durante as entrevistas, para intimidar jornalistas) e, ao menos no caso de Vinil Virtual, sua nudez, independentemente da orientação, visa chamar a atenção para um disco cuja venda beneficia a ela própria.