Eu não vou reclamar, juro pra você. Eu sabia desde o início que a “classificação etária indicativa” para os shows do Paul McCartney no Brasil era a não muito empática “não será permitida a entrada de menores de 10 anos” e meu filho mais novo, e mais fã, tem apenas oito e meio.

E a lei é lei, mesmo quando é confusa, arbitrária e incoerente.

Então o que segue não é bem uma reclamação. É só um relato do que eu descobri nos quase cinco meses em que passei tentando descobrir os limites entre pátrio poder e classificação etária. Na verdade, tentando descobrir o que diabos significa e a quem serve a “classificação etária indicativa” – e como eu poderia usar da minha prerrogativa de pai para levar meu filho para ver um reles show em São Paulo que eu julgo muito importante para a formação dele.

O relato abaixo talvez sirva para meus colegas jornalistas que eventualmente estejam produzindo alguma pauta nesses tempos em que se discute a segurança da criança e os direitos do pai:

 

Bem, os ingressos para todos os shows da turnê brasileira de Paul McCartney foram colocados à venda a zero hora do dia 08 de maio. Para minha surpresa, diferentemente das outras milhares de passagens de Paul pelo país – quando eu mesmo vi diversas crianças pequenas em seus shows, sem que nenhum incidente tenha sido registrado – desta vez foi anunciado que menores de dez anos não seriam permitidos. Entre 10 e 16 anos, só com responsáveis. Antes que os ingressos fossem postos à venda, passei dias conversando com advogados, educadores, jornalistas especializados em roteiro cultural, e cheguei mesmo a ir ao Conselho Tutelar: ninguém parecia totalmente convicto a respeito do sentido da lei, nem se ela se sobrepõe ao meu direito de expor meus filhos ao que eu considero adequado à sua educação cultural.

Um amigo jornalista me soprou o texto que me parecia a mais razoável: cabe aos pais ou responsáveis autorizar o acesso de suas crianças e/ou adolescentes a diversão ou espetáculo cuja classificação indicativa seja superior a faixa etária destes, porém inferior a 18 nos, desde que acompanhadas por eles.

(Na verdade, o texto em itálico é o que diz a Portaria nº 1100, de 14/07/2016 do Ministerio da Justiça, a mesma afixada em todos os cinemas).

Comprei os ingressos online porque me bastava para isso o CPF do titular do cartão. Soube depois que amigos que tentaram comprar presencialmente para seus filhos tiveram sua compra negada. Com os ingressos pagos, começou minha jornada em busca da certeza de não ser barrado na catraca.

Eu queria alguma luz, o que encontrei foi justamente escuridão.

 

 

Comecei do jeito simples, ligando para a T4F, produtora do show. O atendente disse que não poderia permitir o ingresso do meu filho, porque “o alvará” o impedia. Pedi então para ter acesso ao documento, para que pudesse ser analisado por meu advogado, mas o rapaz me respondeu que eles só teriam acesso a ele “alguns dias antes do show”. Então lhe fiz a pergunta óbvia: se o alvará é que determina a classificação etária, como já existe uma classificação indicativa? E veio a resposta óbvia: “Não sei, mas posso encaminhar sua dúvida internamente”. Imaginei que sozinho conseguisse respostas mais rápidas. Agradeci e desliguei.

Escrevo esse texto faltando cinco dias para o show. Entrei no site oficial da T4F e no bannerzinho “alvará” embaixo da foto do Paul McCartney, há um link que me leva para um pdf com diversos eventos passados:

Troquei mensagens com alguns promotores de shows (um deles, aliás, ligado ao próprio show em questão). Foi quando recebi a sugestão de entrar com o pedido de liminar junto à Vara da Infância.

Passei semanas reunindo documentos, mostrando que eu estaria presente, que a mãe também autorizara, que haveria dois adultos zelando pelo menino, que eu havia cuidado de comprar ingressos nas cadeiras inferiores para evitar as aglomerações da pista, que eu sou jornalista acostumado a grandes eventos, que ele próprio já havia ido a diversos shows musicais e que aquela poderia ser a última chance de meus filhos assistirem ao cara que eles jogam no Rock Band The Beatles. Que, em que pese o sentido da classificação etária (não que eu enxergasse o sentido, mas, vamos lá), o que eu estava pleiteando era sensibilidade para um caso que me parecia excepcional.

começou a parte mais insólita.

A Vara de Jundiaí, onde eu moro com as crianças, não quis nem olhar meu calhamaço. Disse que a decisão era do juiz de São Paulo e que o juiz da residência não afrontaria uma decisão do magistrado do local do espetáculo, que certamente havia estudado com tanto cuidado as condições do show.

Refiz todo o meu calhamaço, colhi assinaturas todas de novo e fui para a cidade grande.

Bem, a Vara da Capital não quis nem olhar meu pedido. Mas o rapaz foi muito esclarecedor, mostrando que a portaria afixada nos cinemas não se aplica a shows, porque, neste caso, a questão não é apenas de conteúdo, mas de estrutura do local.

“Mas isso faz menos sentido ainda” eu argumentei, com espanto legítimo. “Por que a classificação para jogos de futebol, no mesmo horário e no mesmo local do show, é livre! Quer dizer que eu posso levar meu filho pra gritar ‘Juiz ladrão, porrada solução’ num Palmeiras x Corinthians e não posso levar para cantar ‘Hey Jude’?”

Só conseguia me lembrar do inesquecível Rogerinho do Ingá, o personagem do “Choque de Cultura”:

O atendente da Vara da Infância encolheu os ombros e me mostrou o artigo 4 da Portaria 1.100 de 14 de julho de 2006: “O produtor ou responsável pelas diversões públicas mencionadas neste artigo deverá indicar os limites de idade a que não se recomendem” os shows e eventos do tipo.

Voltei à T4F, que continuou insistindo que não poderia abrir uma exceção, por força da lei. Pelo call-center, novamente me vendeu a versão de que o juiz da Vara da Infância estudara minuciosamente o conteúdo e o espaço físico dos shows e que eles nada poderiam fazer a respeito. Mas não soube me responder como, coincidentemente, todos os locais, do Beira Rio ao Allianz, do Mineirão à Fonte Nova, tiveram a mesmíssima avaliação técnica para que se chegasse a classificação etária.

Àquela altura, já pipocava a polêmica das crianças no Queermuseu e no La Bête, ao mesmo tempo que se multiplicavam as pautas de famílias felizes no Rock in Rio, onde, aparentemente, os produtores ou responsáveis pelas diversões públicas indicaram um limite de idade menor a que não se recomendem. Olha que feliz o Bernardo parece nessa foto, prestes a curtir um rock’n’roll com seus pais:

Cheguei a um segundo figurão de dentro da produtora que, novamente, me recomendou que constituísse um advogado e entrasse com uma liminar, como única saída para que eu não fosse barrado na catraca. Foi o que fiz. Minha última curva.

A resposta do Ministério Público me deu vontade de sentar na calçada e chorar. Basicamente, a promotora de justiça disse que, diante da preocupação tão grande da T4F com meu filho, não seria ela que “obrigaria” a produtora a cometer a imprudência de colocar o garoto para dentro do show.

Eu não tenho nem palavras para agrader tanta preocupação.

“Expandir a estrutura” – em que mesa isso foi pedido?

Minha jornada em busca de esclarecimento terminou na quarta-feira, 11 de outubro, véspera do dia das crianças, quando coloquei duas meia-entradas a venda, com a certeza de que a classificação etária para shows é um misto de arbitrariedade com os interesses dos produtores em limitar ou aumentar o acesso de meio-pagantes.

Faço votos de que Paul McCartney, 75 anos, se mantenha saudável e impecável por pelo menos mais dois aninhos, e volte ao Brasil assim que meu filho faça 10 anos. E torço ainda mais para que, em 2019, a T4F não meta a mão na cartola e tire de lá uma outra faixa etária que impeça o garoto de assistir ao compositor de algumas de suas músicas favoritas.