03 - Roberto Carlos diabólico

Estava no táxi em Porto Alegre, em direção ao aeroporto Salgado Filho, quando entra no rádio “Quero que vá tudo pro inferno”, modelo 1965 original na voz do autor, Roberto Carlos, o Brasa. Claro que bastou a introdução lamuriosa de teclados para que o motorista puxasse o assunto de como o cantor-autor havia banido de seu repertório a canção, o maior clássico dos tempos do iê-iê-iê, devido a uma mistura de entendimento religioso, superstição e transtorno obsessivo. Resolvi entrar no jogo: “Acho curioso que a música mais diabólica, infernal, do repertório do Roberto ele continue cantando, e ninguém nunca tenha parado para refletir sobre ela”, eu disse, com ar misterioso. O piloto, que se identificou como grande fã e conhecedor da obra de Roberto, quis saber que música seria essa.

“Detalhes” – respondi.

O motorista simplesmente encostou o carro para me ouvir. Arregalou os olhos como quem esperasse ser atingido por uma grande verdade, engatou o ponto-morto e silenciou.

“Quero que vá tudo para o inferno” é um desabafo juvenil – talvez ficasse mesmo meio ridículo na voz de um senhor de 70 anos, mas é isso o que é. Ninguém entenderia aquilo literalmente, como se alguém tivesse poder para mandar tudo para o inferno, muito menos pelo motivo banal de sentir-se sozinho porque a namorada está fora do país em pleno inverno. E, mesmo em se tratando de um cristão praticante como Roberto, o inferno é alvo constante de debates teológicos. Há a turma dos aniquilacionistas, que entendem que o fim de tudo o que é de Deus é o céu, e o fim de tudo o que luta contra Deus é o fim mesmo. Há as leituras mais liberais, que discutem que as imagens de tormento da Bíblia são alegorias para realidades espirituais difíceis de explicar. E, claro, há os literalistas, que realmente entendem o inferno como um lugar de castigo físico, enxofre, labaredas de fogo que nunca se apagam e punição de eternidade em eternidade.

Seja como for, querer – ou não querer – que algo vá para o inferno, ou que tudo vá para o inferno – metaforicamente ou literalmente – é uma construção teológica.

O problema de “Detalhes” não é teologia. É prática. É uma música de maldição e vingança, o abandono respondido com o aprisionamento de quem se amava.

Quem já foi traído ou abandonado sabe que há poucas ferramentas para machucar quem te traiu ou te abandonou. A pessoa já está em outra, provavelmente na praia com o amante, rindo e girando o gelo do copo de caipirinha com o dedo, empolgada com o pôr-do-sol no mar, com o coração perfeitamente resolvido em sua decisão de te descartar, e você, ali, gongado, pego de surpresa, juntando os cacos de um passado despedaçado e de um futuro que decidiram reconstruir por você.

Qual a única arma que você tem? A maldição: Não adianta nem tentar me esquecer, bebê; durante muito tempo em sua vida eu vou viver. Quando você olhar para o sol, eu vou estar lá. Quando você pisar na areia, eu vou te assombrar, quando você sorver a caipirinha, vai se lembrar de tudo o que bebemos juntos, e vai doer mais em você do que em mim.

Na tradição judaica, existia um negócio chamado “repúdio”. Era um dispositivo pra lá de machista que dava ao homem o “direito” de deixar sua esposa “por qualquer motivo” e partir para um novo relacionamento, deixando a anterior ainda legalmente presa a ele, como uma espécie de “plano b” que pudesse ser sacada por necessidade sexual ou mão de obra na lavoura. Jesus vai explicar que é justamente para evitar esse tipo de situação que Moisés criou a carta de divórcio: para que a mulher abandonada pudesse recomeçar sua vida.

Em “Detalhes”, Roberto propõe uma espécie de repúdio mental, como saldo àquele que foi abandonado: a parte culpada pode até partir, mas continuará acorrentada à parte traída. Se o apóstolo Paulo tem razão em dizer que o amor é sofredor, tudo suporta, não busca seus próprios interesses e não se irrita, então quem ama não deve lançar tal maldição sobre o objeto que amou. E se a marca dos seguidores de Jesus é amar uns aos outros, então “Detalhes” é muito mais infernal do que “Quero que vá tudo pro inferno”.

O queixo do taxista despencou: “Nunca tinha prestado atenção nessa letra desse jeito!”.

De fato, Roberto canta com tanta suavidade, sobre aquele arranjo de doces flautinhas, que transforma uma declaração de vingança em declaração de amor. No Youtube, dezenas de slide-shows com casais abraçadinhos ilustram uma letra que, simplesmente, diz o seguinte: Você pode até tentar me esquecer, mas, sinto muito, não vai conseguir. Eu vou te assombrar quando você ligar o carro onde andávamos juntos, quando você vestir a calça jeans de que eu tanto gostava. Quando seu novo namorado estiver falando ao seu ouvido, você vai se lembrar de mim – e saiba que os elogios dele não serão tão sinceros quanto os meus. Você vai sentir saudade, vai procurar meu retrato sorrindo para você – mas naquele momento, saiba que eu não estarei sorrindo para você de verdade, mas te odiando profundamente por tudo o que você me fez. Aliás, sempre que você sentir saudade, lembre-se: a culpa é sua. Na hora em que você estiver na cama com seu novo parceiro, cuidado pra não chamá-lo pelo meu nome. Se aceita um conselho, melhor ficar calada durante o sexo para não cometer essa gafe. Eu sei que ele vai estar louco pelo seu corpo, mas sei também que ele não vai dar a você o prazer que eu te dei. Provavelmente você, desesperada, vai fingir chegar ao orgasmo, e, se chegar, atenção: até nesse momento você vai lembrar de mim. Mas não se preocupe. Com o tempo, nosso grande amor vai virar quase nada. Mas “quase” também é mais um detalhe…

Se isso não for a maior maldição que um amante abandonado pode jogar sobre alguém, então não sei o que é. Perto de “Detalhes”, “Quero que vá tudo pro inferno” parece “Jesus, Alegria dos Homens”.

Acho curioso que ninguém jamais tenha reparado (e como Roberto nunca tenha admitido, mas como ele nunca fala sobre música não chega a ser uma surpresa) como a construção da letra de “Detalhes” é inspirada em “They Can’t take that away from me”, de George e Ira Gershwin. Na época, Roberto começava sua relação profissional com Ronaldo Bôscoli, o homem que dizia gostar mais de Frank Sinatra do que de mulher. [Outro dia o filho de Ronaldo, João Marcello, me disse concordar com o pai: “O Sinatra já te apunhalou pelas costas antes?”, genial].  A gravação de Sinatra é do seu impecável disco Songs for Young Lovers de 1954. O curioso é que ambas as músicas falam sobre memórias afetivas, mas a do americano tem muito mais da dubiedade típica com que os brasileiros usam a palavra “saudade”: “O jeito como você usa seu chapéu”, “o jeito como bebe seu chá”, “o jeito como você sorri com seu riso largo”, são tudo “coisas loucas que me mantêm amando você”. Sinatra conclui: “A gente pode até mesmo nunca mais se encontrar nessa turbulenta estrada do amor, mas ainda assim eu vou manter essas memórias”. Isso, senhoras e senhores, é uma canção de amor. “Detalhes” é uma rogação de praga em forma de música.

O que, claro, não diminui em nada seu brilhantismo. “Detalhes” está no álbum de 1971, o disco que começa a solucionar a passagem de Roberto para o tipo de música adulta que ele manteria, industrialmente, pelas duas ou três décadas seguintes. É considerada pelo próprio autor como sua obra-prima, e só no século 21 já a regravou cinco vezes. O clichê diz que Roberto é o melhor tradutor da alma brasileira, tanto em sua paixão e tristeza portuguesas quanto na violência com que devolve o abandono, o melhor enviado ao limite da condição humana. Se é isso mesmo, então Roberto nunca acertou tanto quanto em “Detalhes”, porque nunca foi tão humano, tão carnal – ou tão anti-espiritual, se preferir – ainda que retrate um sentimento deveríamos evitar, e não celebrar.

Mas somos todos humanos e quando não conseguimos, é bom saber que “Detalhes” está lá para amaldiçoar tão lindamente em nosso lugar.